O JANUÁRIO, OU MELHOR: O JANUÁRIO
O seguinte: Januário, o bateleiro, apurava-se na travessia do rio Pungué. Por força de seus braços, homens e coisas passavam para o oposto lado do rio.
O lugar estava cheio de paisagem. A planície toalhava extensos verdes. A estrada de areia se desenrolava cega até se despenhar no rio. Os viajantes, defronte `p corrente, aceitavam a soberania da água sobre os viventes. Na pausa, eles olhavam o fazer de Januário e esperavam seus raros despachos.
Primeirem-se vocês, pessoas. Depois, as cargas.
Não era ordem, mas simples conferir de princípios. Depois, o pau findava no fundo e a jangada de madeira rumava. Os olhos de Januário, oblíquos, buscavam não se sabe que infinito. Houvesse ou não um rio: ele tinha sempre o olhar na outra margem. Como se outra travessia ele empreendesse dentro de seus cursos interiores.
Januário ia e vinha. Os passageiros que vinham da Europa espreitavam aventuras, inebriavam-se de exótico:
Nester rio não há crocodilos?
De Januário os estrangeiros não queriam senão a tradução dos mistérios. Ele, em si, não constava. Fosse porque ele jamais respondeu à pregunta, jamais desvendou segredos do mato. No líquido silencio, ele e o rio fluíam em recíproca viagem.
Só depois de a luz se afogar na savana é que Januário despegava dos serviços náuticos. Ninguém sabia os caminhos por os que regressava, ninguém conhecia onde morava. Dizem que, incertas vezes, lhe viram passando num hipopótamo, perdendo-se nos capinzais.
Improvado cavaleiro em improvável montada, Januário se retirava pelas traseiras do mundo. Os mesmos que falavam o assunto asseguravam que, pela via de igual vivículo, o bateleiro atravessava a madrugada para se achegar ao rio. Dizem.
Foram fluviando os anos, aguacentos. O rio sempre vencendo a paisagem, pois só ele se republicava, gerando-se mesmo depois das secas. Até que, um dia, o progresso se decidiu a construir ali uma ponte de cimento e ferro. Bem junto do local onde labutavam Januário e o batelão. Fizeram um desio na estrada enquanto espetavam ferros na areia e erguiam plataformas de betão.
Januário assitia, impassível, à construção. Várias vezes lhe avisavam:
–Essa ponte será o fim da sua utilidade.
Ele não respondia nem palavra nem gesto. Os outros insistiam:
Você vai ficar desempregado, Januário.
Mas a aflição nele não pegava. Se havia sombra naquele homem, seria a sombra do meio-dia: ninguém podia assinalar.
A ponte, enfim, se fabricou. Mas o trânsito ainda não abrira: a obra já parida carecia de cerimónia de registo. A inauguração se anunciou para o seguinte dia. Mas foi adiada, motivo das chuvadas.
O que se passou, em seguida, ninguém pode comprovar. Foi o rio que inchou, grávido das chuvas? Foi erro de construção, desatenção do ferro? Mas naquelas noites de chuva houve gente que ficou de alma à janela, inquirindo o escuro. Esses juram ter visto uma manada de hipopótamos investindo contra a ponte. E na garupa do primeiro animal: Januário, o próprio expropriado. E assim se explicaria a ponte naufragada.
Do bateleiro não mais se soube. Hoje, dele se lembram apenas os mais velhos, na hora dos poentes. Afinal, quando o mato escurece é só o Sol quem anoitece. O resto mantém-se vivo, de sono bastante desperto.
Mia Couto
Cronicando. Editorial Caminho, 7ª edição, 1991
No hay comentarios:
Publicar un comentario