Conocí al poeta caboverdiano Jorge Barbosa y este poema suyo al leer Crónica da pomba branca (2008), de António Lobo Antunes. Ahí estaba esa "fininha melancolia"...
MOMENTO
Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?
Não a do tédio
desesperante e doentia,
Não a nostálgica
nem a cismadora.
Esta nossa
fininha melancolia
que vem não sei de onde.
Um pouco talvez
das horas solitárias
passando sobre a ilha
ou da música
do mar defronte
entoando
uma canção rumorosa
musicada com os ecos do mundo.
Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?
a que suspende inesperadamente
um riso começado
e deixa um travor de repente
no meio da nossa alegria
dentro do nosso coração,
a que traz à nossa conversa
qualquer palavra triste sem motivo?
Melancolia que não existe quase
porque é um instante apenas
um momento qualquer.
Jorge Barbosa
Jorge Barbosa (Praia, Cabo Verde, 1902 - Cova da Piedade, Almada, 1971)
CRÓNICA DA POMBA BRANCA
O sítio onde moro em Lisboa é uma aldeia. Tem merceariazinhas, lojecas, cabeleireiros pequenos, uma constelação de restaurantezitos, sapateiros, costureiras, capelistas. Não o habitam pessoas ricas, o que se percebe pelos automóveis, pela roupa, pelas caras. Toda a gente se conhece. Há pombos a sujarem os tejadilhos (ainda bem que as vacas não voam) gatos à Stuart Carvalhais e, no que respeita ao meu quarteirão, do algeroz para cima sou o melhor escritor. Ignoro se sabem o que faço, julgo que têm uma ideia vaga. Há quem me trate por senhor doutor e quem me trate por senhor António. Prefiro senhor António: afinal de contas sou um carpinteiro. Aqui ao lado, sempre que saio, um grupo de reformados joga à moeda. Digo – Boa noite meus senhores desbarretam-se – Boa noite senhor doutor e o jogo continua atrás de mim, solene. É à hora alegre e triste em que os candeeiros começam a acender-se e uma fininha melancolia, como escreveu o poeta cabo–verdiano Jorge Barbosa (quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia) entra devagar em nós, doce, quase agradável, com a lembrança das pessoas de quem gostámos dentro, transparentes, a sorrirem. Caixotes de lixo cambulhando para a rua. Mulheres sentadas na soleira e o senhor António passando por elas com o livro na cabeça e a saudade dos mortos. Há armazéns também, eternamente fechados. Nas janelas iluminadas lustres, ângulos de armário, prateleiras forradas e eu cheio de ternura por aquilo tudo. Nem um pingo de vento nas árvores. O que estarás a fazer? A entrar em casa, a jantar? Daqui a poucos dias desatam a tornar-se pequenos e o cinzento deles a desbotar no meu peito, a fininha melancolia engrossando. Jorge Barbosa Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar? E onde páras tu, senhor António? Metes a chave no buraquinho, entras e a sala enorme, escura. Livros, quadros, retratos. Os cortinados escondem os prédios em frente, o escritório negro, negro. Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar? Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca – Ora cá temos uma cáriezinha desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro. Onde pára o meu pai que, de certeza, se foi embora do cemitério para a companhia dos seus cachimbos, dos seus livros. Dizia – Bem vês e fazia um silêncio antes de continuar. Bem vejo o quê, pai? Os pais estão entre nós e a morte. Se calhar um homem só se torna homem depois do pai morrer. Homem no sentido mais profundo do termo, qualquer que tenha sido a nossa relação com ele. Depois do enterro do meu avô o meu pai fechou-se no escritório e pôs Bach tão forte que se devia ouvir na Venezuela. Ficou para ali horas a ensurdecer o mundo. Quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia? Chamo-me António. Ao encontrar-me de manhã para a barba penso – Chamo-me António um nome tão comum, de pobre. Se fosse rico chamava-me Bernardo ou Lourenço ou Gonçalo. Assim, consolo-me com António. Apesar de tudo parece-me menos feio que Hernâni. O que importa? Chamo–me Eu. E o Eu debruçado para o papel nas redacções em que tenho gasto a vida. António porque os meus dois avôs eram Antónios. O que será de mim? Gosto do andar onde moro, não penso mudar-me mais, assenta-me bem nos ombros. António não: senhor António. Olha, se calhar envelheci. Cruzes canhoto: envelheci uma ova. Tenho quinze anos e vou para o treino de hóquei do Benfica. Nos intervalos não estudava e compunha versos, furioso com a sua mediocridade. O mendigo do costume pede-me cigarros: dou-lhe o que estou a fumar. Não fala, murmura, quase não se aguenta nas canetas. Nem sequer cheira mal, isto é ainda tão sujo que está para além dos cheiros. Olhinhos piscos, dedos incertos. Isto junto do templo adventista onde nunca vi ninguém entrar, frente a umas escadinhas que conduzem sei lá onde. Que bonitos os pés das mulheres agora, em Julho, que linda a sua forma de andar. Pouso a caneta, olho as minhas mãos. Estão vazias. Mas tenho a certeza que, se as juntar, ao abri-las sai uma pomba branca. Como os ilusionistas do circo na época em que eu menino. Aí está ela, cheia de arrulhos, a bater as asas em mim.
António Lobo Antunes
Revista Visão (28-8-2008)
CRÓNICA DA POMBA BRANCA
O sítio onde moro em Lisboa é uma aldeia. Tem merceariazinhas, lojecas, cabeleireiros pequenos, uma constelação de restaurantezitos, sapateiros, costureiras, capelistas. Não o habitam pessoas ricas, o que se percebe pelos automóveis, pela roupa, pelas caras. Toda a gente se conhece. Há pombos a sujarem os tejadilhos (ainda bem que as vacas não voam) gatos à Stuart Carvalhais e, no que respeita ao meu quarteirão, do algeroz para cima sou o melhor escritor. Ignoro se sabem o que faço, julgo que têm uma ideia vaga. Há quem me trate por senhor doutor e quem me trate por senhor António. Prefiro senhor António: afinal de contas sou um carpinteiro. Aqui ao lado, sempre que saio, um grupo de reformados joga à moeda. Digo – Boa noite meus senhores desbarretam-se – Boa noite senhor doutor e o jogo continua atrás de mim, solene. É à hora alegre e triste em que os candeeiros começam a acender-se e uma fininha melancolia, como escreveu o poeta cabo–verdiano Jorge Barbosa (quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia) entra devagar em nós, doce, quase agradável, com a lembrança das pessoas de quem gostámos dentro, transparentes, a sorrirem. Caixotes de lixo cambulhando para a rua. Mulheres sentadas na soleira e o senhor António passando por elas com o livro na cabeça e a saudade dos mortos. Há armazéns também, eternamente fechados. Nas janelas iluminadas lustres, ângulos de armário, prateleiras forradas e eu cheio de ternura por aquilo tudo. Nem um pingo de vento nas árvores. O que estarás a fazer? A entrar em casa, a jantar? Daqui a poucos dias desatam a tornar-se pequenos e o cinzento deles a desbotar no meu peito, a fininha melancolia engrossando. Jorge Barbosa Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar? E onde páras tu, senhor António? Metes a chave no buraquinho, entras e a sala enorme, escura. Livros, quadros, retratos. Os cortinados escondem os prédios em frente, o escritório negro, negro. Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar? Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca – Ora cá temos uma cáriezinha desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro. Onde pára o meu pai que, de certeza, se foi embora do cemitério para a companhia dos seus cachimbos, dos seus livros. Dizia – Bem vês e fazia um silêncio antes de continuar. Bem vejo o quê, pai? Os pais estão entre nós e a morte. Se calhar um homem só se torna homem depois do pai morrer. Homem no sentido mais profundo do termo, qualquer que tenha sido a nossa relação com ele. Depois do enterro do meu avô o meu pai fechou-se no escritório e pôs Bach tão forte que se devia ouvir na Venezuela. Ficou para ali horas a ensurdecer o mundo. Quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia? Chamo-me António. Ao encontrar-me de manhã para a barba penso – Chamo-me António um nome tão comum, de pobre. Se fosse rico chamava-me Bernardo ou Lourenço ou Gonçalo. Assim, consolo-me com António. Apesar de tudo parece-me menos feio que Hernâni. O que importa? Chamo–me Eu. E o Eu debruçado para o papel nas redacções em que tenho gasto a vida. António porque os meus dois avôs eram Antónios. O que será de mim? Gosto do andar onde moro, não penso mudar-me mais, assenta-me bem nos ombros. António não: senhor António. Olha, se calhar envelheci. Cruzes canhoto: envelheci uma ova. Tenho quinze anos e vou para o treino de hóquei do Benfica. Nos intervalos não estudava e compunha versos, furioso com a sua mediocridade. O mendigo do costume pede-me cigarros: dou-lhe o que estou a fumar. Não fala, murmura, quase não se aguenta nas canetas. Nem sequer cheira mal, isto é ainda tão sujo que está para além dos cheiros. Olhinhos piscos, dedos incertos. Isto junto do templo adventista onde nunca vi ninguém entrar, frente a umas escadinhas que conduzem sei lá onde. Que bonitos os pés das mulheres agora, em Julho, que linda a sua forma de andar. Pouso a caneta, olho as minhas mãos. Estão vazias. Mas tenho a certeza que, se as juntar, ao abri-las sai uma pomba branca. Como os ilusionistas do circo na época em que eu menino. Aí está ela, cheia de arrulhos, a bater as asas em mim.
António Lobo Antunes
Revista Visão (28-8-2008)
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